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Le Chronic

Quem vê coração não enxerga nada. Assim dizia meu pai, mergulhado na amargura de suas escolhas. Mãezinha nunca teve muita voz na fazenda e recorrentemente sepultava a própria fala diante de tanta ignorância, preocupada com a saúde. Como bom aprendiz, segui os métodos de mãe e seu silêncio sepulcral enquanto contava os dias para sair dali. Morar na capital é um sonho que guardo desde criança. Sinto dentro de mim que pai e mãe também guardam, gostariam de deixar tudo para trás, mas como herdaram um bocado de gado de vovô Fidêncio, não teve como fugir da sina rural.

Meus dezoito anos finalmente chegaram e meu maior desejo era uma passagem só de ida. Já tinha tudo planejado, desde a chantagem emocional que me levaria a Belo Horizonte até o meu destino como cidadão urbano. Ironicamente, naquele dia ganhei cinco cabeças de gado de presente de aniversário. O que seria um agrado virou um impulso desesperado para me tirar dali, jamais eu escolheria por livre e espontânea vontade a vida que meus pais levaram.

Cheguei pensando grande e comecei nos bancos a procurar por emprego. Posso não ser bacana estudado em faculdade, mas sou o ás da matemática lá na terrinha. Não deu outra, rapidamente eu já havia me tornado um funcionário respeitado do banco Outer, uma empresa dessas gringas que eles chamam de tatap. (Startup). Aos poucos aprendi que força de trabalho é saúde, que dinheiro não traz verdade e que tudo isso é uma mentira bem contada, mas que até hoje me seduz. Compreendi finalmente, após dois anos de multinacional, o silêncio de mãezinha. “Antes um silêncio cúmplice do que a fala de um culpado”, dizia.

Depois do mar de clareza que fora minha última epifania, levantei enérgico e ansioso para chegar no banco, “hoje as coisas vão começar a mudar”, pensava decidido. Cheguei na sala do gerente, Téo, cheio de questionamentos e demandas envolvendo direitos humanos, rotinas de trabalho e relações pessoais. Me sentia tão bem em defender minha classe, pessoas como eu, pessoas insatisfeitas e incompletas, que precisavam de muito pouco a mais do que recebiam para serem minimamente felizes no banco. Ele ouviu tudo, mas seu único questionamento era o porque de eu ainda estar ali. Lembro bem de suas palavras, “não gostou? Então pode ir pegando suas coisas.”

Mal tinha dinheiro para pagar o aluguel daquele mês. Demitido no momento menos favorável possível, eu segurava meu humilde guarda-chuva debaixo de um tufão. Yana, mulher maravilhosamente positiva, sentava a duas mesas de distância e era #tudopramim naquele banco. Foi só eu sair da empresa e ter um dia à toa para ver no Instagram uma foto dela com Téo em algum restaurante chique. Minha lady é Murphy.

Já despejado, o antigo ás da matemática agora vendia paçoca no trânsito para não morrer de fome. Aturava desaforos constantes de homens grandes e mimados, grossos como meu antigo gerente, até o dia em que aquilo tudo passou dos limites. Fiz como no banco, escolhi um cliente igualmente grande, mimado e dei-lhe um discurso sobre direitos humanos, desigualdade nas capitais e sobre o conceito de felicidade. Tive que ouvir do mesmo cara que ali não tinha lugar para jumento como eu, além de clichês do tipo “não quer brincar, não desce pro play”. Aquilo me devastou, fui embora caminhando cabisbaixo em direção ao antigo lar na esperança de ver uma notícia boa na caixa do correio.

Ao menos o porteiro ficou feliz em me ver, chegando lá o cabra já veio sorridente com uma pancada de cartas para me entregar. Eu que nunca fui de receber muita correspondência já fiquei coelho. Quando abri a primeira carta entendi tudo, eram todas lamentações pela morte dos meus pais, como se não bastasse o tamanho do furacão. O sentimento de solidão foi crescendo desregrado, nunca mais feijão de mãe, nunca mais charuto com pai, nunca mais brainstorm com Yana. Foquei em ler as cartas para não dar brecha para lágrimas. A única carta diferente era uma carta oficial, que dizia sobre a herança que eles haviam deixado. Mais cabeças de gado do que eu conseguiria contar a olho e uma grande fazenda na terra onde nasci.

Talvez vivamos apenas para compreender as verdades que já passaram, enquanto construimos a nossa para o deleite da próxima geração. Sinto falta de vocês. Mãe, pai, Yana. Meu maior aprendizado nessa vida foi sobre reconhecer as verdades alheias antes de sair em busca de si. Conto minha história ao menos uma vez por mês aos viajantes e vizinhos, sentado em uma cadeira que sempre critiquei por rangir, na tal fazenda que já foi de meus pais. Hoje sei da grandeza no rangido.

Que as próximas gerações passem mais tempo sendo verdadeiramente felizes do que procurando suas verdades.

A ocupação Tina Martins

Depois de um massacre ideológico “em nome do povo” no dia 17, tomamos as dores. Feras das mais temidas apunhalavam nossa expectativa ao longo das falas. “Ignorância é uma benção”, quase acreditei. Quase.

Um tempo depois, a expectativa renasce como uma fênix em forma de luta. O fogo ilumina o caminho da passeata, o palco, as líderes e o objetivo. Levantou voo novamente. Envolvido por uma aura feminina inquebrável, fui guiado até a ocupação Tina Martins em um dia apoteótico.

Ao longo do percurso, a aura trouxe pessoas queridas. Lá estavam amigas, amigos, co-workers, tia Ciça e tia Cléria, com seus quarenta anos de militância, debaixo de chuva por democracia. Não fiquei surpreso, mas confortável ali.

Chegamos! Entrávamos aos poucos pelo portão enquanto os gritos de recepção e a música se espalhavam pela falange. Lá dentro, mulheres cabulosas dentro e fora de fotos, mas nunca fora de foco. Beleza e sabedoria de incontáveis maneiras e outras incontáveis maneiras de descrever o que senti. A maior ocupação de mulheres da América Latina. Mulheres que são raiz, galho, semente, fruto e pássaro. Não dependem de ninguém.

Respirar cultura, ouvir resistência e sentir o nome do povo, o verdadeiro nome na pele. Não é à toa que a fênix é uma figura feminina. Diria que me senti honrado, mas deixei a honra de lado e agora não sei descrever. Bia Nogueira, Irene Bertachini, Titane, Nath, Aline Calixto etc. Levemente intimidado por tamanha força, a sutileza das vozes, dos sorrisos e da grande aura me trouxeram um repouso de espírito.

A cidade do “carna belô”, da rua do amendoim, da sorveteria São Domingos, da praça do Papa, da Rosa Leão, do Olga, da Ventosa, do Papagaio e de muitas outras agora tem a maior ocupação de mulheres da América Latina! (vale repetir)

VIVA TINA MARTINS!

Depressão

O barulho dos passos se aproximando.
Me assusta a possibilidade de ter que ter uma conversa
Prosa rápida, não te interessa o “tema”
Mas é sempre a mesma ladainha
Desconstruindo os troféus
As resenhas, quentes como sempre
Risadas
Adulteradas quase sempre

A prosa é patrocinada
Tá achando o que?
Realização de quem detém a verba
Quem rege o teto
Mas carece de gente
E reflete a carência
Quando abro a porta

Tem gente que gosta
Pra mim basta o tamanho
Que as quatro paredes tomam quando chego em casa
O peso da porta cai sobre meus braços
E eles resistem
Empurram até o fim enquanto os ouvidos aturam o rangido
Falta de óleo, falta de tempo, sei lá

Estava eu em cima do tapete
Constatando o novo e vasto cômodo
Medonho
O que de longe parece uma ponte
De perto pareço enganado
Ao cruzar a porta que custei a abrir, fui barrado
Disseram que só adoradores do sistema entram
Uma pena
Gosto de vermelho e não sei mentir

Mulher

Mulher por Rafael Braga

Incandescentes chamas de independência
Que inflamem até quem não sente!
Que representem!
Seja louvada Eva antes de Adão e de deus, aos que crêem
Adão já foi mais do que muito paparicado
Não cai a ficha que, inevitávelmente,
Há medo nas ruas, da emancipação, de ser.
Com tantos canalhas, ser gente até que é seguro, mas..

Mas o caráter e a beleza são insuperáveis
Resistem bambos, recebendo pedradas de todos os lados
Afrontas e dúvidas sobre a veracidade da sua causa
Não está sozinha, sua causa é verídica e sabemos disso
Enquanto você contava sua história, caímos.
Apaixonados pela luz que entrava e, de fininho, acendia o seu discurso
Inflamado pelas coisas que sabe e que ama
Pelas coisas que morreria e que morrem.
Por como você ama
E como ama
Passa um sorrateiro obrigado
Envergonhado pela “classe”
De cabeça baixa, mas cheio de afeto e reconhecimento
Pela figura que você representa e vai representar cada vez mais
Se tudo der certo (e vai dar), conte comigo, Mulher.

Velório em Notre Dame

Navegantes árduos se revestem
Com corações aguados
Por lágrimas escuras
Aguam um doce solo infértil
Para um marinheiro débil
Que já faleceu

Enterram os ossos mais profundos
De um esqueleto corcunda
Que muito apanhou
Cega-se o ponto mais doído
Que era cicatrizado
E agora é repartido

Um dia acharão esse tesouro
Os ossos de um corcunda enterrados lá no morro

Zarpa o navio tripulado
Com todos os teus pecados
O seu capitão de fora
Toma o rum que estava ao seu lado
O rumo que é melhor tomar embriagado

Um dia acharão esse tesouro
Os ossos de um corcunda enterrados lá no morro

Quando seu navio o deixou
De repente viu que estava a cantar
A melodia triste que fazia
O seu navio, então, zarpar

Um dia acharão esse tesouro
Os ossos de um corcunda enterrados lá no morro

Gabriela

Eu não sou mulher qualquer
Não me vendo fácil
Sou do acaso
E que ninguém tente mudar
Entre inúmeros tarados, bêbados e bêbados tarados
Prefiro a mim

Não sou mulher qualquer
Eu saro fácil
O metabolismo é rápido
Não ligo pra tapa
Mas se pego o meu na cama com aquela vaca
Pode ser o dia de sorte de vocês
Porque vão ver porrada

Viagem

Beira de estrada
Carros, vacas, café e mato
Frases em vão
Olhando para o vidro do carro
Olhos se vão
Para as montanhas, picos dos vales
Paro meu carro pra ver a paisagem
Mas não entro por causa da cerca
E vou embora pro Rio
Em cerca de quatro horas chego
Ou não
Caso eu me perca ou aconteça algo
Diga aos meus filhos para pularem a cerca
No bom sentido
Aproveitem a vista

A vista da Janela

A vista da janela do trem. Árvores indo embora como lembranças de um passado nebuloso, o pasto longo parecendo uma vasta tela em branco e o café mineiro, puro como a moça que o observava. A vida entre palcos nunca foi fácil, mas aquele trem simbolizava uma cadeia de oportunidades mundo afora. Quem nunca sonhara se aventurar na capital? Mesmo que desventuras e contratempos tomassem conta de sua viagem, seus olhos repletos de expectativa naquele assustador número de pessoas indicavam que nada comprometeria sua jornada.

Mesmo com um talento ainda mais assustador que as pessoas de Belo Horizonte, seus dias se resumiam a alguns trocados em uma bolsa velha que levara consigo. As pessoas não queriam ver aquilo, não tinham tempo e paciência necessários. Ou pelo menos era o que diziam. Aos poucos, sua singela cena de rua foi se transformando em uma grande representação teatral da cruel pressa urbana.

Os dias árduos pareciam provas de que, um dia, o mundo provaria daquele talento. Ela seguiu sem hesitar por um segundo, com sua cara de atriz e sua vida desastrada. Encarava o próprio julgamento todos os dias em seu espelho de bolso, junto com a saudade de casa e sua meta, até então malsucedida.

O dia amanhecia cinza e Marina, como sempre, carregava todas as suas cores para a rua. O martírio da moça ia desaparecendo lentamente conforme cativava pessoas e portas se abriam. Atingiu aos poucos a vida que sonhava, de cenas de rua a aplausos incessantes, plateias calorosas, filas de autógrafo. Até que acordou, deu de cara com um grande espelho, e só o que lhe restava era a saudade de casa.

Eu não sei de nada

Pareço até louco por estar levemente são em meio a uma avalanche de desafinos, braços torcidos e chope derramado. Antes chope do que leite. Quando retomei minha posição de homo (duplo) sapiens, vi que estava na pior. Em termos alcoólicos, eu era o teor mais baixo da festa e esboçava claramente em meu rosto o desentendimento de tudo aquilo. Assumi meu posto, sempre favorito, de observador e deixei o “circo pegar fogo”, como dizem.

Em poucos minutos, o controle já estava no brejo. Recolhi meus amigos e conhecidos, simulamos um balde de pipoca, logicamente, com canecas de chope. Quando me dei conta, estava encarando uma luz ofuscante enquanto o dr. Marcos reparava os dentes que quase perdi naquele dia. O melhor é que não me lembro de nada.
Ou o pior

Bastião

Parece até outro país, o calor com que Joaquina me recebera em sua vida derretia minhas nobres e nefastas expectativas e as forjava em realidade. No dia seguinte, ao provar de um café amargo e saboroso (ainda não se comparando ao mineiro), observava o esboço da felicidade que eu nunca encontrei no rosto da moça. Um sorriso simples e honesto, típico do boníssimo humor cearense. Vi que era hora de criar vergonha, antes de criar raízes.

Devo ter algum problema, menos de uma hora na rua com minha mochila e me deparo com Mariana. Moça cheirosa dos cabelos dourados, cuja pele não cedeu à ferocidade do Sol nordestino. Como recusar essa oferta de abrigo? E olha que ela nem tinha oferecido… ainda.

Como dizia, foi uma noite e tanto. A intensidade era tamanha que não sei ao certo se Ângela gravou meu nome. Enfim, voltei à peregrinação rotineira. Vagava sem rumo pelo Meireles quando fui fisgado pela peregrina mais sensual que já avistei (talvez a única peregrina sensual que já avistei). Antonella, nome belo, não? Uma síntese dos sete mares expressada em dois olhos, mosaico celestial. Encontrei o amor de minha vida. Seu único abrigo eram meus braços, meu único abrigo eram seus olhos. Até que Antonella teve que seguir viagem e criar vergonha, para não criar raízes.

Até hoje me enlouqueço pela moça que mexeu com meus rumos. Acho que é a vida. Quem planta não tem vergonha na cara.